A estreia de Carneiro como líder nas entrelinhas

A minha gratidão pelos que, ontem e hoje, participaram nestas eleições internas do Partido Socialista. Agradeço, também, as mensagens de militantes e simpatizantes, e de cidadãs e cidadãos que, mesmo sendo independentes, me têm incentivado a servir o país”
José Luís Carneiro abriu a sua primeira intervenção como líder ainda sem resultados fechados — e a contagem só deverá ficar completa este domingo –, tendo chegado a ser distribuída uma folha com resultados provisórios durante a sua intervenção a confirmar que era mesmo ele o líder (95% dos votos nessa contagem ainda não fechada). Não havia margem para dúvidas, sobretudo com uma candidatura única à liderança do partido, mas os dados também mostravam uma participação a tocar os 50% (de militantes que estavam em condições de votar), abaixo das diretas de 2023 — numas eleições incomparáveis, já que desta vez não houve disputa. Mas o agradecimento de Carneiro logo na abertura, a tentar fazer crer que a sua candidatura congrega mais do que militantes do PS e chega a independentes, contrastava com uma sala totalmente despida de apoios. O candidato diz que foi assim que ficou definido e que não houve convites, embora nas suas redes tenha divulgado o evento e o local do mesmo, precisamente ao estilo de um convite. A sua vitória não foi acolhida em festa, já que na sala estavam apenas o presidente do partido, Carlos César, e poucos nomes do seu círculo mais próximo, como o mandatário da sua candidatura José Leitão, o antigo deputado Paulo Pisco, o coordenador da sua moção, André Moz Caldas, e Inês de Medeiros.
Temos de dar passos sólidos. Sabendo o que queremos e para onde vamos. Sem precipitações. Sem tentações táticas. Sem nos concentrarmos excessivamente em questões conjunturais”
Carneiro pega no PS num dos momentos mais frágeis da sua história, com uma derrota nas legislativas que o empurrou para terceira força política no Parlamento. É por isso que o novo líder disse, na sua primeira intervenção, que, ainda assim, continua a acreditar que os valores do partido “têm condições para continuarem a ser maioritários no país”. Mas o quadro é tenso, a começar por dentro do partido onde já sabe que contará com vozes críticas que até tentaram encontrar uma alternativa à sua candidatura (Fernando Medina, Duarte Cordeiro, Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes). E foi com conhecimento deste contexto que, quando falou do partido, aconselhou “passos sólidos” e “sem precipitações. Sem tentações táticas. Sem nos concentrarmos excessivamente em questões conjunturais”. Quando questionado pelos jornalistas, no final da declaração, sobre se tinha sido essa atitude interna taticista que tinha conduzido o partido aos resultados eleitorais, desviou como se afinal aquele fosse um tiro dirigido ao Governo, que, de “forma leviana” juntou criminalidade e imigração, ainda recentemente. Mas o aviso à tal “tentação” surgiu quando ainda estava a falar do partido e encaixa que nem luva no ambiente interno socialista — de resto vem também em linha com os avisos em catadupa que deixou na apresentação da sua candidatura, no início do mês, quando se dedicou mais aos avisos para dentro do que para fora. Carneiro ainda não deixou de olhar por cima do ombro e no próximo sábado tem já a Comissão Nacional onde vai propor alterações à direção, para ter uma equipa sua e não aquela que herda de Pedro Nuno Santos, como o Observador tinha noticiado.
Carneiro enfiou bonés às várias alas do PS e deixou mais recados para dentro do que para fora
Nos tempos que vivemos, muitos políticos têm a tentação de ceder à política-espetáculo. À vertigem do momento. De procurar o vedetismo individual. Fazem-no impondo um custo às nossas sociedades”
O PS perdeu terreno diretamente para o Chega nas últimas legislativas e com autárquicas à porta — com essa mesma ameaça sobre os ombros — o novo líder apontou baterias também para esse lado do espectro partidário. Disse que os políticos dados à “política-espectáculo” podem “ter a vida mediática fácil e apoios conjunturais, mas levam-nos para o atraso”. Nomeou-os mesmo: os “populistas” que o “fazem de modo mais histriónico”, mas também os “conservadores e neo liberais” que “o fazem mais discretamente”.
Esperem de mim uma postura diferente. Procuro ser uma pessoa ponderada. Tenho bem a consciência de que, também na política, uma vida/opção não refletida não é uma vida/opção vivida. Procuro ter sentido de responsabilidade”
A determinação do perfil de líder que fez não podia procurar maior oposição com a linha da anterior liderança de Pedro Nuno Santos. No partido — e não só — apontou-se sempre a precipitação como uma das principais características do então líder e agora Carneiro quis marcar essa diferença apresentando-se não só como “ponderado”, com como um político de reflexão e não de impulso. É é na sequência disto que também se apresenta como um político que está disponível para o diálogo. Promete mesmo “procurar ser parte da construção de caminhos” para o país, mas sobretudo ser um líder mais próximo do terreno, “ir ao encontro da necessidades das pessoas”. Isto tudo numa altura onde é dominante a crítica ao alheamento dos partidos tradicionais ao que importa aos eleitores.
No fim de agosto, início de setembro, vamos realizar uma Convenção Autárquica para que os nossos candidatos assumam a sua vinculação aos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade”
No calendário político seguem-se eleições decisivas para o PS que é o que tem maior representatividade ao nível do poder local. No ambiente político em que o país vive e o PS muito em particular, mais um desaire eleitoral (sobretudo com novas perdas para o Chega) pode ser fatal — e ainda mais numas eleições em que os socialistas têm conseguido ser hegemónicos. Depois disso virão as presidenciais, que Carneiro quer ignorar pelo tempo que conseguir, evitando mais problemas e divisões internas. Nesta intervenção não tocou no assunto até ser questionado sobre isso mesmo pelos jornalistas, nomeadamente sobre um potencial candidato que é um dos seus apoiantes, Augusto Santos Silva, quando já está no terreno António José Seguro. Disse apenas que existir mais do que uma candidatura numa área política “é uma expressão da qualidade da nossa democracia”. Quanto à eventual expressão de mais uma divisão interna que possa vir aí, o novo líder chutou para um canto para lá das autárquicas.
Não nos preocupa que forças que respeitamos, também progressistas, mas radicais, não compreendam a nossa posição [sobre Constituição]. Ela não tem a ver com qualquer competição entre partidos de oposição. Tem tão só a ver com sentido de Estado. Com responsabilidade perante os cidadãos. Com convicções reformistas de que Portugal precisa que os grandes partidos democráticos não se deixem dividir sobre os princípios basilares do Estado de Direito democrático”.
O maior abalo para o PS nas últimas legislativas foi sentido no Parlamento, onde passou pela primeira vez a terceira força política, ficando atrás do Chega, mas sobretudo deixando de fazer parte da maioria necessária para alterar algumas leis, nomeadamente a Constituição. Luís Montenegro já esfriou esse debate da revisão constitucional — que a IL e o Chega trouxeram logo para cima da mesa para forçar mudanças — ao decretá-lo como não prioritário, mas também não o tirou totalmente o caminho. Carneiro surge mais uma fez a oferecer “consensos democráticos” em áreas de soberania à AD, mas parece querer em troca respeito por essa posição que sempre teve na maioria que pode mudar a Constituição. Diz mesmo que nesse capítulo o PS não compete com os partidos “radicais”, mas antes se inclui no arco dos “grandes partidos democráticos”. Lembra (ao “sentido de Estado” de Montenegro), que estes não se devem “dividir” sobre o que está na base do Estado de Direito.
O PS usará todos os instrumentos de fiscalização para se opor a medidas erradas, injustas e ineficazes … O PS exercerá em pleno o seu papel de oposição, apresentando propostas alternativas. Somos oposição alternativa“
José Luís Carneiro tem uma imagem de socialista moderado que já tem história, tanto que foi o perfil que mais explorou nas diretas contra Pedro Nuno Santos para se opor à ideia de um socialista mais radical e colado à esquerda. Apresentou-se mesmo como uma espécie de guardião da “autonomia estratégica do PS”, que era o mesmo que dizer que não queria o partido ao centro. Mas sabe que essa discussão interna está por fazer e que a sua moderação tem anticorpos, porque como todos os socialistas ouviu Pedro Nuno avisar que o PS não devia apoiar o Governo de Luís Montenegro. E o antigo líder não é o único com dúvidas sobre se um caminho tão próximo do adversário não acaba por deixar a oposição e alternativa entregues ao Chega. Assim, Carneiro recorre à unânime defesa do Estado social para jurar às hostes que o PS será “oposição a este Governo”. Apontou mesmo a um Governo que “ameaça” o Estado Social e contra o qual, se for necessário, avançará com todos os instrumentos para se opor a medidas lesivas desse princípio. Mas também uma “oposição leal. Responsável, firme e enérgica”, descreveu no difícil equilíbrio que já percebeu que terá de fazer entre a muleta da AD e o irresponsável bloqueador do poder executivo.
A minha experiência diversificada de vida fez de mim uma pessoa compreensiva e determinada. Firme, serena e tranquila”
Terminou a intervenção com mais umas linhas no seu cartão de visita de novo líder do PS. E também do secretário-geral do PS que vem depois do líder Pedro Nuno Santos, normalmente descrito como alguém com uma linha de maior impulsividade e radicalismo. José Luís Carneiro quer assentar nessa diferença a construção do seu perfil político, na esperança de que isso possa trazer-lhe resultados também eles diferentes.
observador